Criatividade e sublimação: fatores relacionados
- Vitória Machado
- 26 de abr. de 2023
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Atualizado: 8 de abr.
A criação pode ser compreendida como uma via de expressão subjetiva que, em certos casos, se impõe como necessidade vital. Para alguns sujeitos, criar não é apenas uma escolha, mas uma forma de elaborar aquilo que não encontra representação direta — um modo de dar destino ao excesso pulsional. Nesse sentido, a psicanálise oferece o conceito de sublimação como chave teórica para entender esse fenômeno: um desvio da pulsão de sua meta sexual em direção a produções socialmente valorizadas, capazes de sustentar o laço com o outro (Freud, 1915). Ao longo deste texto, propõe-se uma articulação entre a teoria psicanalítica da sublimação e estudos contemporâneos da criatividade, especialmente o modelo de Sternberg e Lubart, para investigar como fatores individuais e, sobretudo, ambientais podem favorecer ou impedir esse processo.
Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de 1905, Freud apresenta o conceito de sublimação, explicando-o como um dos desfechos da disposição perversa polimorfa infantil. Em suas palavras:
O terceiro desfecho da disposição constitucional anormal é possibilitado pelo processo de ‘sublimação’, no qual as excitações hiperintensivas provenientes das diversas fontes da sexualidade encontram escoamento e emprego em outros campos, de modo que de uma disposição em si perigosa resulta um aumento nada insignificante da eficiência psíquica. Aí encontramos uma das fontes da atividade artística, e, conforme tal sublimação seja mais ou menos completa, a análise caracterológica de pessoas altamente dotadas, sobretudo as de disposição artística, revela uma mescla, em diferentes proporções, de eficiência, perversão e neurose (FREUD, 1905, p. 225).
Outro caminho que a pulsão pode tomar é o recalque, conceito que possui impasses e proximidades na relação com a sublimação — ambos operam como formas de evitar a realização sexual direta. Conforme Freud e a tradição psicanalítica indicam, o recalque mantém o sujeito preso ao sexual interditado, operando sob a lógica da proibição e da recusa da consciência. Já a sublimação, por outro lado, desloca essa energia pulsional, não mais orientada à satisfação sexual direta, mas a expressões culturalmente valorizadas — o que poderiamos denominar como modo de lidar com o impossível da satisfação.
Essa distinção, no entanto, não foi clara desde o início. Em Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna (1908), Freud aproxima o recalque da sublimação ao sugerir que ambos envolvem uma dessexualização do impulso pulsional, o que cria um impasse conceitual: se ambos passam pela retirada da sexualidade explícita, como diferenciá-los? Uma possível resposta surge com o ensaio sobre Leonardo da Vinci (1910), onde Freud propõe que, na sublimação, não há recalque prévio, mas sim uma transposição direta da energia pulsional para a produção de objetos sublimes — sem que se perca, necessariamente, o traço polimorfo-perverso da pulsão. O impulso não é negado ou recalcado, mas inscrito em outro registro, o da criação.
Portanto, se o recalque visa a recusa, a sublimação visa a transformação. Enquanto o recalque pode levar à formação de sintomas, a sublimação oferece uma via de expressão possível. Além disso, Freud já indicava, em O mal-estar na civilização (1929), que uma sociedade repressiva intensifica a necessidade de sublimação, como uma tentativa de dar destino às pulsões reprimidas e, assim, sustentar o laço social. Contudo, como o próprio Freud admite, a sublimação permanece como um conceito insuficientemente elaborado, cujos mecanismos permanecem em parte misteriosos.
De todo modo, uma outra ideia criticável por sua vagueza é a de que a sublimação seja colocada como um dos caminhos “mais desenvolvidos” que levam o sujeito à criação, sendo descrita como um mecanismo não acessível a todos. Se for assim, o que a tornaria um “privilégio” de poucos? Freud pouco explicou sobre as nuances da sublimação e admite:
Os instintos e suas transformações constituem o limite do que a psicanálise pode discernir; daí em diante cede lugar à investigação em biologia. Somos obrigados a procurar a fonte da tendência à repressão e a capacidade para a sublimação nos fundamentos orgânicos do caráter, sobre o qual se vem erigir posteriormente a estrutura mental. Já que o talento artístico e a capacidade estão intimamente ligados à sublimação, temos de admitir que a natureza da função artística também não pode ser explicada através da psicanálise. (FREUD, 1910, p. 140)
Se Freud admite as limitações de sua teoria, convido a pensar na “criatividade” citando outros marcos importantes, como a teoria da Gestalt e o estudo do insight — fenômeno do processo criativo em que uma ideia ou ato é expressa pelo criador repentinamente. Outros nomes, como Rogers, Maslow e Rollo May, inseridos na psicologia humanista, apontavam para o ímpeto de autorrealização como força motriz da criatividade. E, para isso, seria necessário um ambiente com liberdade de escolha e ação.
Após os anos 1970, o foco dos pesquisadores passou a recair sobre as influências ambientais, a abordagem individual foi então substituída por uma visão sistêmica do fenômeno da criatividade — exemplo desse avanço se evidenciou com Sternberg e Lubart (1991, 1993, 1995, 1996), que estabeleceram seis fatores ou recursos que interagem entre si e se mostram necessários para a expressão criativa: inteligência, estilos intelectuais, conhecimento, personalidade, motivação e contexto ambiental — alguns desses aspectos já abordados por Amabile (1983), MacKinnon (1965) e Barron (1969).
Em relação à inteligência, Sternberg e Lubart (1995, 1996) consideram essencial a disposição para perceber um problema por diferentes ângulos, a habilidade de distinguir quais ideias podem ser mais promissoras e, finalmente, a capacidade de vender essas ideias de forma eficaz. Quanto aos estilos intelectuais, Sternberg (1991) usa três categorias: legislativo, executivo e judiciário — sendo o primeiro o mais importante para a criatividade, já que envolve formular novas regras e maneiras de compreender diferentes contextos. O conhecimento também é um fator determinante e se divide entre o formal (adquirido por livros, aulas, cursos etc.) e o informal (o que não é ensinado de forma explícita e talvez nem possa ser verbalizado diretamente). Através do conhecimento, mais associações podem ser feitas, favorecendo a criatividade (Sternberg; Lubart, 1991, 1995).
Quanto ao fator personalidade, características como autoestima, confiança, coragem para se expressar, predisposição a correr riscos e tolerância à ambiguidade são grandes influências — especialmente estas últimas, que proporcionam o tempo necessário para o amadurecimento das ideias (Sternberg; Lubart, 1995). A motivação é outro fator diretamente relacionado à performance criativa, principalmente quando há prazer na realização das tarefas, como observado em participantes de diferentes áreas e níveis de conhecimento nas pesquisas de Sternberg e Lubart (1995). Fortes motores de motivação estão ligados ao desejo de reconhecimento, autoestima, domínio sobre o problema ou mesmo à descoberta de uma ordem oculta na realidade.
E, finalmente, o contexto ambiental: a criatividade pode ou não ser validada por terceiros, sendo mais ou menos incentivada ou facilitada. Sternberg e Lubart (1995) explicam que o ambiente afeta a produção criativa tanto no grau em que favorece a geração de novas ideias quanto no nível de encorajamento e suporte ao seu desenvolvimento — além, é claro, da avaliação do produto criativo.
Portanto, se a sublimação for realmente um “privilégio” de poucos, talvez a causa esteja vinculada não apenas ao estilo, características e predisposições pessoais — mas também ao contexto social, que impacta diretamente os demais fatores mencionados. Afinal, em uma sociedade que escraviza o tempo dos indivíduos (para citar apenas uma complicação), como seria possível dar expressão ao estilo, por exemplo?
Com uma visão talvez mais idealista, Amabile (1983, 1989, 1996) sugere, para o estímulo da criatividade em escolas e ambientes de trabalho, que se encoraje a autonomia do indivíduo, respeite-se sua individualidade, valorize-se as realizações mais do que notas, ressalte-se o prazer no ato de aprender e exponham-se os indivíduos a experiências que estimulem sua criatividade e curiosidade, oferecendo feedbacks e exemplos de outras pessoas criativas. Já Winnicott contribui ricamente ao deselitizar a criatividade, propondo-a como uma disposição presente no brincar e na experiência cultural espontânea – uma via possível de sublimação no cotidiano, e como gosto de pensar, uma resistência ao imperativo gozoso da sociedade.
Se a sublimação é uma via possível para a pulsão, sua realização depende não apenas de predisposições individuais, mas também das condições ambientais que favorecem ou inibem sua expressão. Os fatores apontados por Sternberg e Lubart — como motivação, estilo, personalidade e conhecimento — só podem se desenvolver plenamente em contextos que os sustentem. Assim, criar não é apenas uma capacidade individual, mas uma possibilidade que se constrói no laço social e nas condições simbólicas que cada ambiente oferece.
Referências
AMABILE, Teresa M. The social psychology of creativity. Nova York: Springer-Verlag, 1983.
AMABILE, Teresa M. Growing up creative: nurturing a lifetime of creativity. Nova York: Crown House Publishing, 1989.
AMABILE, Teresa M. Creativity in context. Boulder: Westview Press, 1996.
BARRON, Frank. Creative person and creative process. Nova York: Holt, Rinehart & Winston, 1969.
FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: FREUD, Sigmund. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, Sigmund. Pulsões e destinos das pulsões (1915). In: FREUD, Sigmund. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, Sigmund. Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910). In: FREUD, Sigmund. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. XI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, Sigmund. Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna (1908). In: FREUD, Sigmund. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização (1929). In: FREUD, Sigmund. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
MACKINNON, Donald W. The personality correlates of creativity: a study of American architects. In: TAYLOR, C. W.; BARRON, F. Scientific creativity: its recognition and development. Nova York: Wiley, 1965. p. 289–311.
ROGERS, Carl R. Liberdade para aprender. Belo Horizonte: Interlivros, 1972.
MASLOW, Abraham H. Motivação e personalidade. São Paulo: Harper & Row do Brasil, 1970.
MAY, Rollo. A coragem de criar. São Paulo: Cultrix, 1986.
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WINNICOTT, Donald W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
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