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O lugar do analista e o manejo da transferência na clínica com crianças

  • Foto do escritor: Vitória Machado
    Vitória Machado
  • 26 de mai.
  • 8 min de leitura

Atualizado: 27 de mai.

A psicanálise, desde suas origens, se estabelece como uma prática que privilegia o diálogo e a escuta entre sujeitos. Mais do que uma técnica terapêutica, ela se configura como uma experiência dialética, na qual o encontro entre analista e analisando promove a emergência de sentidos e a transformação subjetiva. Essa perspectiva dialética encontra ressonância nas tradições filosóficas que antecedem a psicanálise, especialmente na dialética hegeliana, que oferece uma estrutura para compreender os movimentos de contradição e superação presentes no processo analítico. Ao longo deste texto, exploraremos como esses fundamentos dialéticos se manifestam na clínica psicanalítica, com ênfase na análise com crianças, destacando a importância da transferência, do desejo do analista e das funções parentais na constituição subjetiva. 

Lacan, no texto "Intervenção sobre a transferência" (1951/1998), explora como a experiência analítica se dá entre sujeitos em relação. Antes de qualquer intervenção, o analista introduz o campo do diálogo — com esses princípios, a psicanálise se constrói como uma experiência dialética. As primeiras linhas do que poderíamos chamar de noções da dialética já aparecem em "Fédro", de Platão (1996), delineando o que está em jogo no processo do diálogo. Com o tempo, essa ideia percorre um longo caminho até resvalar em Kant e ganhar corpo em Hegel. No livro "Introdução à Leitura de Hegel", Kojève (2007) nos convida a pensar o Ser e a dialética hegeliana — acompanhando-o, podemos considerar a lógica hegeliana como uma pretensão ontológica, ou seja, um estudo das propriedades do Ser, que, por sua vez, é atravessado pela dialética e só pode ser revelado no pensamento e no discurso. 

Se o Ser se revela pelo pensamento ou discurso, torna-se essencial compreender o que está em jogo nesse processo dialógico em que a dialética se constitui. Usarei os termos (em negrito) difundidos, porém, não diretamente usados por Hegel, para fins de exposição breve da sua dialética, que se estrutura em três momentos: a tese, como uma afirmação inicial; a antítese, como sua contraposição; e a síntese, que supera o conflito entre ambas, integrando seus elementos e elevando a compreensão a um novo nível. Não se trata de uma simples refutação de ideias, mas de um processo dinâmico em que a contradição move o pensamento adiante. 

Na clínica psicanalítica, assim como na filosofia hegeliana, o discurso do paciente é interrogado pelo analista, promovendo inversões que possibilitam novas significações. O paciente apresenta um primeiro desenvolvimento de “verdade”, que o analista é chamado a interrogar, operando uma espécie de inversão — uma antítese — que abre espaço para um novo desdobramento no discurso, fazendo girar a cadeia de significantes. Essas inversões apoiam-se na transferência, o que nos leva a um novo ponto de análise. 

Plon e Roudinesco (1998) lembram que o termo “transferência” não é exclusivo do vocabulário psicanalítico — remete a transporte, deslocamento, troca de um lugar para outro. Podemos, portanto, pensar o conceito emprestando-lhe os ruídos de sentido dessas palavras familiares. Desde 1909, em "Notas sobre um caso de neurose obsessiva", Freud já aponta a transferência como a reprodução e deslocamento da relação recalcada com as imagos parentais para a figura do analista. Em "Além do princípio do prazer" (1920/1980), ele retoma o tema, sublinhando seu caráter repetitivo, vinculado a fragmentos da vida sexual infantil. 

Lacan (1951/1998) comenta o caso Dora e aproxima a transferência de uma sequência de inversões dialéticas. Em seu seminário de 1954-1955 (1979), dedicado ao eu e aos escritos técnicos de Freud, inscreve a transferência numa relação entre o eu do paciente e a posição do grande Outro. Em "A direção do tratamento e os princípios de seu poder" (1957/1998), o Outro passa a ser a “outra cena inconsciente”, o lugar onde a fala se desdobra, fazendo com que, ao perguntar "o que quer o Outro?", o sujeito se interrogue sobre sua própria identidade. 

No seminário de 1961-1962 (2003), dedicado à identificação, a transferência aparece como materialização de uma operação de engano: o analisando supõe que o analista esteja no lugar de saber sobre seu mal-estar, inaugurando o termo “sujeito suposto saber”. Já em "Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise" (1964/1985), Lacan coloca a transferência ao lado do inconsciente, da repetição e da pulsão — definindo-a como uma encenação da realidade do inconsciente. 

Na análise com crianças, a associação livre não ocorre como com adolescentes e adultos. Ainda assim, é viável construir transferência e produzir inversões dialéticas por meio de recursos variados. Dolto e Nasio (2008, p. 79) mencionam fantoches, pintura, modelagem. Qualquer que seja o recurso, ele deve permitir a expressão de afetos, conflitos e tensões, orientando as conversações, nas quais o analista intervém ao interrogá-la e fazê-la falar. Nessa perspectiva, a análise com crianças evidencia como a transferência pode ser mobilizada por meios simbólicos e lúdicos, funcionando como mediadores das inversões dialéticas. 

Renata Petri (2024), em artigo na Revista Traço, defende a criança como analisante plena, o que implica o lugar-função de analista. Interrogar a criança e fazê-la falar é distinto de tentar oferecer o que ela supostamente precisaria, sendo essencial resistir à tentação de tomá-la como objeto de gozo da analista. O desejo do analista diz respeito ao seu dever ético de ser semblante de objeto a — presentificando-se e possibilitando a produção de significantes que o determinam, ao mesmo tempo em que dirige o tratamento apontando para a inconsistência do Outro e sustentando sua falta. 

O analista é convocado ao lugar de Outro, mas cabe ao desejo de analista operar para que este lugar não seja tomado — pode ser sustentado, porém, não encarnado. Além disso, o semblante de objeto a, apontado pelo desejo de analista, não exige nada de específico da criança, permitindo que ela prossiga no desenlaço de seus conflitos e direcionando o tratamento para uma possível saída da alienação do desejo. A clínica com crianças deixa em relevo o campo do Outro, ao se presentificar na figura de adultos responsáveis. 

Sobre esses adultos, Lacan destaca, na "Nota sobre a criança" (1969/2003), que a constituição subjetiva se dá a partir da transmissão de um desejo não anônimo — particularizado, inscrito nas funções materna e paterna. A função materna oferece palavras ao bebê, introduzindo-o na linguagem. Já a função paterna atua como separadora e mediadora, legislando a impossibilidade de complementariedade entre sujeito e Outro — aqui, encarnado na “agente materna”. Quando essa função falha, a criança pode se tornar objeto da fantasia materna, posição que pode levá-la a desenvolver sintomas somáticos ou psíquicos. A função paterna transmite um testemunho de como seu agente encontrou modos possíveis de satisfação entre o desejo e o interdito — um saber-fazer com a falta. 

Neste ponto, mostra-se necessário refletir, ainda que brevemente, sobre o diagnóstico diferencial de estruturas — algo que se realiza na transferência. Calligaris, em Introdução a uma clínica diferencial das psicoses (1991), afirma que qualquer tipo de estruturação do sujeito, seja ela neurótica, psicótica ou perversa, configura uma defesa. Trata-se de uma defesa “contra o que seria, imaginariamente, o seu destino se ele não se defendesse estruturando-se: — ser reduzido ao seu corpo — o objeto de uma Demanda imaginária do Outro —, perder-se como objeto de gozo do Outro” (Calligaris, 1991, p.14). Em outras palavras, para não se oferecer totalmente como objeto diante da demanda de gozo do Outro, a criança deve criar uma metáfora — ou seja, realizar substituições significantes. 

Então, na neurose, supõe-se que um saber-fazer com a falta é transmitido pelo agente da função paterna e, assim, constitui-se a aposta neurótica de que “ao menos um” saberia lidar com a demanda do Outro. Com isso, forma-se a imagem daquele que detém o saber sobre essa demanda, permitindo ao sujeito referenciar-se a um saber e com isto advir conflitos, por exemplo, a “dúvida neurótica”. Na psicose, por outro lado, essa referência não ocorre. Não há incidência da operação edípica que vincule o saber suposto sobre a demanda imaginária do Outro materno à figura paterna. Como afirma Calligaris, “na psicose não há uma organização centralizada do seu saber e do seu mundo” (1991, p. 15). 

Se, na neurose, o analista aponta para a falta do Outro e apresenta a brecha que se oferece junto a ela como possibilidade de transformação, na psicose o analista pode, por meio da relação transferencial, caminhar junto ao sujeito — convocado a ser, como nomeia Grant, “um secretário do alienado”, embora possa também “ser interpelado como um saber” (2007, p. 195). 

Diante disto, podemos fazer uma distinção importante entre as duas modalidades de não-anonimato do desejo: de um lado, o que emerge da posição do Outro primordial, geralmente ocupado por figuras parentais; de outro, o desejo de analista, que, embora também não anônimo, se estrutura de forma diversa, por não capturar a criança como objeto de sua fantasia. O desejo analítico não se refere a uma expectativa pessoal sobre o sujeito, mas se ancora numa disposição ética de não saber — um desejo que resiste a preencher a falta com significações próprias. Trata-se de criar um espaço onde a criança possa nomear, inventar e atribuir sentidos a partir de sua experiência singular. 

Essa distinção nos conduz aos modos de nomear e nominar. A nomeação se dá num registro edípico, atrelado à fantasia e ao gozo fálico — nomear segundo o Outro. A nominação, por sua vez, aponta para um movimento inventivo, no qual o sujeito, ao confrontar a inconsistência do Outro, constrói novas referências, fundadas numa operação própria de significação. Diferente dos adultos que ocupam as funções parentais, atravessadas por fantasias e referências particulares, a analista transmite a falta como possibilidade — condição para que algo novo se diga e se crie. 

Diante destas elaborações, passando por conceitos de dialética, transferência e desejo, percebemos como a clínica psicanalítica com crianças nos confronta com impasses ligados à constituição subjetiva. Nesses momentos, a analista sustenta as condições que viabilizam o tratamento. Aqui, o desejo de analista opera como função — que não captura a criança, mas testemunha, com sua presença e intervenção, um saber-fazer com a falta. Essa presença desejante não se impõe como modelo, mas atua como marca de alteridade: visa tocar o desejo da criança e, em seguida, ceder espaço, deixando que o sujeito construa seu próprio caminho. 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

 

CALLIGARIS, Contardo. Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. 

 

FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer [1920]. In: ______. Além do princípio de prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1980. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 18). 

 

FREUD, Sigmund. Notas sobre um caso de neurose obsessiva: o homem dos ratos. Rio de Janeiro: Imago, 1909. 

 

GRANT, Walkiria Helena. O diagnóstico estrutural e sua relação com a transferência em um tratamento analítico. Ágora (Rio de Janeiro), v. 10, n. 2, p. 187–201, jul./dez. 2007. 

 

KOJÈVE, Alexandre. A dialética do real e o método fenomenológico de Hegel. In: KOJÈVE, Alexandre. Introdução à leitura de Hegel. São Paulo: Contraponto, 2007. p. 421–494. 

 

LACAN, Jacques. A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 591–652. Original publicado em 1957. 

 

LACAN, Jacques. Intervenção sobre a transferência. In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 219–233. Original publicado em 1951. 

 

LACAN, Jacques. Nota sobre a criança. In: LACAN, Jacques. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 369–370. Original publicado em 1969. 

 

LACAN, Jacques. O seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud (1953–1954). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979. 

 

LACAN, Jacques. O seminário, livro 9: A identificação (1961–1962). Tradução de Ivan Correia e Marcos Bagno. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2003. 

 

LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. Original publicado em 1964. 

 

PETRI, Renata. O desejo de analista na clínica com crianças. Revista Traço, n. 3, 2024. 

 

PLATÃO. Fedro. In: PLATÃO. Diálogos. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. p. 129–183.  

 

ROUDINESCO, Élisabeth; PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. 

 

 
 
 

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